terça-feira, 11 de dezembro de 2007













A ILHA
J. Afra 2001

volumes, espaços, subjectividade
ou alguns tópicos para uma estética do vazio



Sempre tive uma enorme predilecção pelos grandes espaços abertos e devo confessar que a minha relação escultórica com o volume nunca foi muito pacífica pelo que, a maioria das vezes e por dever de ofício, não passamos de uma situação de compromisso nem sempre satisfatória para ambas as partes. Nunca aprofundei convenientemente as razões, mas tenho para mim que tendo nascido e vivido durante muitos anos frente ao mar, e a poder olhá-lo até à linha do horizonte, talvez que esse facto possa, de algum modo, ter contribuído para uma espécie de claustrofobia mental que os volumes me causam.
Ao longo do tempo, tenho desenvolvido um certo trabalho de auto-persuasão: os volumes são também porções de espaço tridimensional, preenchidos por determinadas matérias que configuram as formas e se recortam, por sua vez, noutros espaços envolventes. Os volumes serão, por assim dizer, quantificações qualificadas do espaço visual, ou por nós percepcionados como tal. Mas em vão!
Encontrei então outra maneira de contornar o problema através do fascínio pelos materiais: as suas características tácteis, a riqueza das texturas, as cores, a plasticidade, a dureza e até a temperatura natural de cada um deles, mas sobretudo o prazer de os trabalhar. Como vivi muito tempo, em criança, no meio de pedreiros, descobri mais tarde, um decisivo pendor para as argamassas. Misturar o cimento e a areia nas devidas proporções, acrescentar de água q.b., amassar e em seguida - supremo gozo - de colher e talocha em punho, repetir como num ritual sagrado aqueles gestos que eu vi fazer, há muitos anos, aos pedreiros que conheci. Distribuir e afagar a massa, ora em gestos precisos e decididos, ora tacteantes e sensuais, ali estou eu, em silêncio, compenetrado da minha condição de simples elo duma cadeia que se perde no tempo e na distância.
Acabada a tarefa quebra-se o encanto, desfaz-se a emoção e...lá estão eles, os volumes! No entanto uma coisa eu aprendi: mais importante do que aquilo que se faz é a intenção com que se faz.
A única defesa é tentar esquecer os volumes, esses artifícios escultóricos, fazer de conta que não existem, ultrapassá-los, mas aí me volta de novo a tendência para os espaços "livres", conceptuais, abertos à fruição do ser o que, nos tempos que vão correndo, representa se não um perigo, pelo menos uma visão desajustada das realidades actuais.
A crescente hegemonia dos espaços económicos, a instauração do consumo de massas, a democracia hedonista e a exaltação do individualismo que caracterizam grande parte das sociedades do nosso tempo, determinam a necessidade de demarcar territórios, de estabelecer a destrinça entre o meu e o teu ou o nosso e o deles, através das mais variadas exibições do ter: o carro, o vestuário, o local onde se vive, os adornos da casa, com quem se anda, o que se frequenta, etc. Os objectos de arte são também marcas caracterizantes desse espaço-outro; são expoentes de mais valia e inequívocos sinais de qualificada personalização.
Passados que foram os tempos das vanguardas do modernismo, baseadas na ruptura com a tradição e no culto da novidade e da mudança, com a sua contraditória autofagia criadora, seguiu-se esta outra fase, não menos contraditória, de uma criatividade vazia e repetitiva, já sem nada para negar, mais voltada para as necessidades do mercado, e cuja originalidade dita "pós-modernista", simbiose dos "cacos" das várias épocas, é artificialmente alimentada pelos mecanismos do respectivo espaço económico.
É bem verdade que os nossos conceitos de espaço acabam por determinar, em cada um de nós, a nossa verdadeira dimensão.
Aqui há tempos, um autarca em vésperas de eleições, veio ter comigo e disse-me assim:
- Gostava que pensasse, lá para a minha terra, num monumento à Democracia. - e eu lá fui à terra dele ver o local previsto, como se impunha.
Deparei com um pequeno largo, parcialmente ajardinado, cheio de sol, despido de árvores mas simpático e acolhedor. No relvado, uma mesa, umas cadeiras de ferro e meia dúzia de idosos que jogavam as cartas, enquanto umas tantas crianças andavam por ali aos pulos.
Foi uma semana de angústia. Agora que eu tinha finalmente encontrado a solução para a minha crise existencial, que me dispunha a encetar a cruzada da minha vida, que me iria dar fama e glória, através desta coisa muito simples que seria varrer os espaços, libertá-los dos negregados volumes supérfluos, modelar-lhes de novo o perímetro, esculpir-lhes o chão, organizar-lhes a luz, determinar as sombras e prever a funções, eis senão quando ma vejo alienado à Democracia, por mais respeitável que ela seja. Faço, não faço, eis a questão. Ao fim de oito dias o homem telefona-me:
- Então, já tem uma solução para me dar?
Enchi-me de coragem, tomei o ar dos grandes momentos - que ele não viu... - e declarei secamente:
- Vamos plantar uma árvore!
Como ele nunca mais falasse, tomei eu a iniciativa de lhe lembrar que uma árvore é um ser vivo, como viva deve ser a Democracia, mas que nos primeiros tempos é frágil, precisa de cuidados, de ser alimentada e regada para que se fortaleça e frutifique. Alem do mais, ela irá dar sombra aos velhinhos dos jogos de cartas e os cuidados na sua manutenção será uma lição viva para as criancinhas.
O homem despediu-se à pressa e há tempos, quando ali passei, lá estava a Democracia em pedra, a encher o espaço e, à cautela, rodeada de grades. Dos velhos e das crianças nem rasto.
Começava eu a recompor-me do insucesso da minha nova e ecológica concepção de espaço plástico quando há dias recebi uma carta de uma empresa turística do Algarve, dando-me conta de um novo empreendimento, nos jardins do qual está previsto figurarem grupos de crianças nas suas brincadeiras habituais. Querem saber se estarei interessado em fornece-las em tamanho natural mas em bronze e em atitudes semelhantes a umas fotografias que enviaram junto.
A princípio achei a ideia perversa mas pensei depois que não tenho que achar coisa nenhuma mas sim tentar compreender os significados das coisas e que não têm, necessariamente, que coincidir com os meus. Habituado a associar os jardins à ideia de espaços adequados, entre outras coisas, às brincadeiras das crianças e aos seus jogos infantis, nunca me ocorreu a ideia que os gaiatos pudessem ser substituídos por simples réplicas em bronze o que, pensando melhor, não deixa de fazer sentido.
O fenómeno pode ser observado, sobretudo e por enquanto, nos grandes meios urbanos: é hoje um perigo deixar que as crianças brinquem nos jardins e muito menos na rua, onde ficam sujeitos aos atropelamentos e à violência, alem dos maus exemplos, dos abusos e perigos de toda a ordem que os espreitam. Já agora direi também que tão pouco as nossas casas são o lugar ideal para as suas brincadeiras: as habitações são pequenas, atulhadas de móveis, e não podemos deixar que risquem o chão envernizado, partam a mesa de vidro, estraguem o tapete persa ou reduzam a cacos o jarrão da avó. Acrescentemos a este cenário o facto da maioria dos pais trabalharem fora de casa, a dificuldade de contratar pessoal doméstico, e as tias solteironas e desocupadas serem hoje uma espécie praticamente extinta, resta-nos meter as crianças em “gavetas” apropriadas e, se possível, ao alcance de todas as bolsas: os infantários, as creches, os jardins-escolas, etc.
Mas isto pode ser apenas um prenúncio se levarmos mais longe as nossas considerações. Também nós, os adultos, começamos a estar sujeitos aos mesmos perigos: o aumento da criminalidade, a assustadora violência nos estádios e noutros locais de diversão e lazer, os riscos da condução automóvel, os assaltos, o terrorismo, os atentados e as violações, para não falar já das poluíções de toda a ordem, do desconforto das ruas esburacadas, dos automóveis estacionados, dos andaimes e tapumes, do excesso de pessoas nos passeios, nos restaurantes, nas esplanadas, nos espectáculos e em tudo quanto é sítio.
Noutra perspectiva, porém, os poderosos meios que estão já hoje ao nosso alcance, os multimedia que irão originar as tão anunciadas «auto-estradas da comunicação», irão ter certamente um papel determinante e inversor desta situação. Há hoje muita gente que evita deslocar-se e prefere assistir comodamente, através da televisão, não só ao desenrolar dos acontecimentos mas participando deles, colhendo informações, deixando-se seduzir por este ou aquele produto. - «Não saia do seu lugar!» - é uma frase que se ouve com frequência e cada vez mais assim irá ser. "Consumir" sem sair de casa começa a ser uma realidade: dentro em breve, através do computador, teremos acesso ao mostruário do hiper-mercado, da boutique, da loja de móveis ou do alfaiate; comparar preços, escolher o modelo, assegurar-se da qualidade, pagar com o cartão e receber em casa a mercadoria.
É a "realidade virtual", o convívio sem distâncias, sem horários, sem deslocações; é a discoteca, é o emprego, é o mundo em cada casa, uma "nova dimensão" que se abre à curiosidade e aos interesses selectivos de cada qual, e se pode desfrutar entrincheirado num pequeno habitáculo, sem os perigos e as incomodidades duma "realidade" milenária onde até agora temos vivido.
Metidos também os velhos nas "gavetas" – que são os lares da 3.ª idade -, começa assim a fazer sentido, que os solitários espaços ajardinados, as sedes imponentes e vazias das grandes empresas, e dois ou três cafés mais castiços e igualmente às moscas, venham a constituir os primeiros exemplares dos espaços museológicos do século XXI, com os tais meninos de bronze saltando à corda, tal como o Cauteleiro oferecendo a "sorte grande" no Largo da Misericórdia ou o Fernando Pessoa bebendo café na esplanada do Chiado.
Recuso-me a colaborar!
Alguém já disse que «o homem tende para o infinito» e nessa caminhada, liberto das limitações dos sentidos, prefiro então conceptualizar o Espaço, não já de uma forma fraccionada e restrita, mas no seu todo essencial e absoluto, entidade primeira, fulcro vital de todo o acontecimento.



João Afra
2 Março 95

1 comentário:

Anónimo disse...

Lovely blog (^_^)

Take care!